sexta-feira, 27 de julho de 2012

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Mais um desserviço da Globo

A campanha "É preciso mudar" defende a descriminação das drogas, não
deixa isso claro, mas entra na sua casa em horário nobre, pela Globo. Um mau passo da emissora, além de autoritário!
Reinaldo Azevedo


Caros, vai aqui um daqueles textos quilométricos, mas que tratam de uma
questão séria: descriminação das drogas. Uma campanha está em curso na
TV Globo. E eu digo por que ela tem de sair do ar.
*
O meu arquivo está aí. Combato boa
parte das críticas bucéfalas que são feitas à Rede Globo, especialmente
pela esquerda cascuda. No mais das vezes, não passam de tolices
conspiratórias e de chororô de derrotados. Mas a emissora também comete
erros. Ter aderido à campanha "É Preciso Mudar", que defende a
descriminação das drogas — embora o faça de modo oblíquo —, é um erro
colossal. Sobretudo porque, lamento ter de fazer esta consideração, o
telespectador está sendo enganado. Vamos ver. O objetivo é reunir um
milhão de assinaturas para propor uma nova lei sobre drogas. E por que
acuso a burla? Porque o que se quer mesmo é a descriminação das drogas, e isso não fica claro.
Vocês
certamente já assistiram à peça publicitária, exibida nos intervalos da
novela "Avenida Brasil". Deve fzer parte do marketing social da
emissora. Atores representam consumidores de drogas que teriam sido
presos injustamente por tráfico, tendo, então, suas vidas bastante
prejudicadas por aquilo que é tratado como uma "injustiça". O ar
compungido, o olhar sofrido, a postura de vítima… Até parece que estavam plantando uma árvore, ajudando uma velhinha a atravessar a rua ou dando leite pro gatinho quando, de súbito, chegaram os homens da lei, como
numa história de Kafka, e os conduziram para alguma estranha repartidão
do estado repressor. Não! Tratava-se de pessoas envolvidas com as drogas e certamente não ignoravam as possíveis implicações legais. Ocorre que, no Brasil, todos são sempre vítimas — tanto as vítimas de fato como os
seus algozes.
Muito bem! Já
hoje o Brasil não prende o usuário de droga. Aquela Comissão de Juristas que quer mandar para a cadeia quem maltrata um cachorro e liberar o
aborto de humanos, que não merecem ter o status de um cachorro, também
foi absolutamente laxista com o usuário de substâncias ilegais. A
proposta enviada ao Senado, certamente endossada pela turma do "É
preciso mudar", exclui do crime quem (leiam com atenção, em vermelho):
I – adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo drogas para consumo pessoal;
II – semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de drogas para consumo pessoal.
§3º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz
atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, à conduta,
ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, bem como às
circunstâncias sociais e pessoais do agente.
§4º Salvo prova em contrário, presume-se a destinação da droga para uso
pessoal quando a quantidade apreendida for suficiente para o consumo
médio individual por cinco dias, conforme definido pela autoridade
administrativa de saúde.
Voltei
Entenderam? Se é consumo para cinco dias, tudo bem. Um usuário de crak pode dar conta de até 20 pedras por
dia. Logo, se alguém for pego — quero dizer, "abordado" — com 100
pedras, poderá alegar "uso pessoal". Um fumante regular de maconha
queima quatro ou cinco cigarros diariamente (sim, há quem fume muito
mais), mas vá lá. Quem andasse por aí com erva para 20 cigarros, tudo
bem! O mesmo valeria para papelotes de cocaína, heroína… Ah, mas a
comissão endurece as penas para o narcotráfico! Uau!
Notável
pensamento! Criam-se todas as condições para um aumento da demanda, mas
depois se promete severidade na repressão à oferta! Vai ver os nossos
juristas — e também os notáveis do "É preciso Mudar" — estão dedicados a combater o consumo de drogas pela elevação da inflação do setor, né? É
tudo de um ridículo sem par.
Não deixa claro
A campanha "É Preciso Mudar", veiculada de graça pela Rede
Globo — e isso a torna, lamentavelmente, parceira da iniciativa lunática — não deixa claro o que exatamente tem de ser mudado. Limita-se a
defender uma diferenciação entre o tráfico e o consumo. E aí se leem
essas três pérolas em sua página na Internet (em vermelho). Comento cada uma em azul:
1 – A Lei 11.343/2006, que normatiza a
política de drogas no Brasil não faz distinção clara e objetiva entre
usuário e traficante.
É mentira. A íntegra da lei está aqui. O Artigo 28 deixa claro que ninguém é preso porque apenas consumidor. O máximo que lhe pode acontecer é isto:
"I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo."
2 – Desde que a legislação entrou em vigor, dobrou o número de presos por crimes
relacionados às drogas no Brasil. Essa falta de clareza está levando à
prisão milhares de usuários que não são traficantes.
É um raciocínio de um cretinismo à
altura de alguns promotores da campanha — já falarei a quem pertencem as mãos que balançam esse berço. Ainda que tenha aumentado depois da lei,
não quer dizer que seja por causa da lei. Aliás, dado que o texto é mais brando com o usuário do que a anterior, só se pode concluir que ele não tem relação nenhuma com o anunciado aumento de presos. Pode até haver
consumidores em cana como se fossem traficantes, mas a lei, em si, não
pode estar entre as causas. Se há maus operadores da legislação, esse é
outro problema. Trata-se de um exercício de lógica elementar. Vocês
verão que uma comissão que se envolveu com essa tese reúne, entre
muitos, um grande empresário e dois banqueiros. Não devem lidar com essa lógica nos seus negócios. Ou iriam à falência.
3 – A maioria
desses presos nunca cometeu outros delitos, não tem relação com o crime
organizado e portava pequenas quantidades da droga no ato da detenção.
A Globo deveria submeter esse mimo
da mentira e da estupidez a seu excelente Departamento de Jornalismo
para que seus telespectadores não fossem enganados por uma proposta
tresloucada. O que vai nos itens 2 e 3 não passa de chute, de achismo,
de vigarice intelectual. Faço aqui um desafio: exibam a base de dados. É o mínimo que a emissora campeã de audiência, que detém uma concessão
pública, pode exigir e mostrar. Cadê a pesquisa? Onde estão os dados?
Não existem!
Retomando
A questão das drogas, assim como a
do aborto, é refém de mitômanos, que ficam inventando e divulgando
números que não existem. Até outro dia, espalhava-se aos quatro ventos,
por exemplo, que morriam no Brasil, por ano, 200 mil mulheres vítimas de aborto, lembram-se? Este senhor que vos escreve resolveu fazer uma
continha boba: busquei saber quantos são os mortos por ano no país e
quantos desses mortos são mulheres, identificando as causas, faixa
etária dos óbitos etc. O Ministério da Saúde tem uma base dados. O post
está aqui. Resultado: essa é uma das mentiras mais escancaradas jamais contadas no Brasil. Pararam com essa balela. De janeiro a setembro de 2011,
morreram durante a gestação ou parto 1.038 mulheres. Os aborteiros
multiplicam o número por quase DUZENTOS para que sua causa tenha
visibilidade. O suposto pensamento politicamente correto (o que há de
correto em matar um feto???) adere à causa e sai divulgando a falácia.
A mesma
falácia a que se dá curso no caso das drogas. Esses números não existem! Que eu saiba, a maioria dos quase 500 mil presos brasileiros cometeu
crimes contra o patrimônio, ainda que eventualmente associados ao
tráfico ou ao consumo de drogas. Essa legião de simples consumidores,
todos coitadinhos e réus primários, é uma invenção da turma. A Globo
deve acionar o seu excelente Departamento de Jornalismo antes de cair
nessa esparrela.
Quem apoia e o que se quer?
A campanha tem o apoio da ONG Viva Rio, comandada por Rubens Cesar Fernandes (por que não teria?), da Comissão Brasileira Sobre Droga e Democracia, da Associação Nacional dos Defensores Públicos, da Secretaria Estadual
de Saúde do Rio e da Fundação Oswaldo Cruz. Um dos idealizadores da
iniciativa é Pedro Abramovay, ex-secretário nacional de Justiça,
demitido por Dilma depois que defendeu que os "pequenos traficantes" — e não apenas os usuários de drogas — não fossem presos. Foi a primeira
vez que aplaudi a presidente. Reitero: Abramovay quer liberdade também
para pequenos traficantes e só perdeu o cargo por isso. Referi-me a ele
aqui anteontem. Certas afirmações que não estão amparadas em fatos sobre as drogas podem ser de sua lavra. Ao comentar o Mapa da Violência, por
exemplo, e constatar que, em 10 anos, em São Paulo, houve uma queda de
mais de 80% de mortos entre zero e 19 anos — quando os índices
brasileiros explodiram —, ele não teve dúvida: atribuiu o feito ao… PCC, não à eventual eficiência da política de segurança pública ou à
polícia. Com base em quais dados ou pesquisa ele fez tal afirmação? Ele
não precisa disso! É um rapaz cheio de ideias. Pratica sociologia e
direito criativos.
A campanha da TV, reitero, não deixa claro o que se quer. É a descriminação! Tanto é assim que foi essa a notícia dada pela Folha e reproduzida pelo site do grupo, sem qualquer reparo. Quem noticiou
cheia de entusiasmo o lançamento da campanha foi a revista "SemSemente", dedicada à defesa da legalização da maconha. O texto encerra de modo bastante eloquente (em vermelho):
A veterana Regina Sampaio foi mais
além "Eu venho de uma geração bem atrás, quando o assunto das drogas era bem diferente. Hoje ele é uma questão social. Eu sempre fui contra
radicalismos, para mim tudo que você faz dentro do seu limite é
permitido. Prefiro que meu filho fume maconha do que beba. Tudo que é
exagero faz mal, mas eu acho que a maconha não faz mal para ninguém. É
muito pior um bêbado em casa do que um cara que fuma unzinho na dele."
Após esse depoimento Rubem Cesar encerrou o evento, restando aos poucos
presentes uma mesa farta de croquetes, sanduiches de linguiça e outros
quitutes, devidamente atacada enquanto, em off, se rediscutia tudo que
foi debatido…
Tudo
devidamente compreendido. Não sei quem é Regina Sampaio nem em que ela é "veterana", mas, dado o seu depoimento, fiquei aqui a imaginar. Mas
mais não escrevo.
Estes são os
integrantes da Comissão Brasileira Sobre Drogas e Democracia, segundo
leio em sua página na internet (volto depois):

Paulo Gadelha – Presidente da Fiocruz; Rubem César Fernandes – Diretor
executivo do Viva Rio; Carlos Costa – Liderança Comunitária; Carlos
Velloso – ex-ministro do Supremo Tribunal Federal; Celina Carpi –
Presidente do Movimento "Rio Como Vamos"; Celso Fernandes – Presidente
da Visão Mundial Brasil; Dráuzio Varela – Médico e escritor; Edmar Bacha
– Economista e Ex-Presidente do BNDES; Einardo Bingemer – Coordenador
do Projeto Latino-Americano de Pesquisa sobre Comunidades Terapêuticas
(LATC Research); Ellen Gracie – Ministra do Supremo Tribunal Federal;
Joaquim Falcão – Diretor da Escola de Direito da FGV; João Roberto
Marinho – Vice-presidente das Organizações GLOBO; Jorge Hilário Gouvêa
Vieira – Advogado; Jorge da Silva – Coronel da Polícia Militar do Rio de
Janeiro; José Murilo de Carvalho – Doutor em ciência política,
professor titular do IFCS/UFRJ e membro da Academia Brasileira de
Letras; Lilia Cabral – atriz; Luiz Alberto Gomes de Souza – Sociólogo,
liderança leiga da Igreja Católica; Maria Clara Bingemer – Decana da
Faculdade de Teologia da PUC-Rio; Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça –
Ensaísta e poeta, membro da Academia Brasileira de Letras; Paulo
Teixeira – Deputado Federal; Pedro Moreira Sales – Presidente do
Conselho Itaú Unibanco; Regina Maria Filomena Lidonis De Luca Miki –
Coordenadora do CONSEG e ex-Secretária de Defesa Social da Prefeitura de
Diadema; Regina Novaes – Antropóloga, ex-presidente do Conselho
Nacional de Juventude; Roberto Lent – Neurocientista, doutor em ciências
e professor titular da UFRJ; Rosiska Darcy de Oliveira – Escritora e
co-presidente do movimento "Rio Como Vamos"; Zuenir Ventura –
Jornalista.
Não sei se
alguém dissente da campanha. Consenso em um grupo tão grande é difícil.
Se há dissensões, nada li a respeito — quando eu não concordo com alguma coisa, deixo claro ou caio fora do grupo (caso eu pertencesse a algum — meu grupo é composto de um só; jornalista que pertence a uma turma está querendo é formar quadrilha…). Se ninguém falou nada, então é porque
endossa a propaganda.
Lamento! Essa
gente está ignorando a realidade e o sentimento da esmagadora maioria do povo brasileiro. Não! Não estou entre aqueles que consideram que
maioria ou minoria definem verdade ou mentira. Esse não é o ponto. Fico
aqui a pensar o que pensam as mães e os pais pobres (hoje, são todos de
"classe média", segundo a nova mística) do país, que têm de sair de
casa, deixando seus filhos aos cuidados da escola, dos vizinhos etc. É
evidente que a descriminação das drogas — É O QUE SE QUER, REITERO —
provocará uma elevação do consumo e aumentará as chances de uma criança
ser exposta a substâncias hoje consideradas ilícitas.
A verdade é
que boa parte dos supostos "bem-pensantes" tem sobre o problema uma
abordagem que é, sim, de classe social: imagina-se que, nas periferias
do Brasil, a droga assume as características do consumo recreativo dos
nossos, como direi?, libertários endinheirados.  O flagelo do crack está aí, aos olhos de toda gente. Com ele, não há diálogo possível — ou
alguém já descobriu essa pólvora?
Encerro
observando que a campanha que está no ar tem ainda claros componentes
autoritários: busca convencer pela emoção; não deixa claro qual é seu
real propósito e omite a agenda de alguns de seus idealizadores. Na
comissão acima, encontro, por exemplo, o deputado Paulo Teixeira (SP),
atual líder do PT na Câmara. Uma pesquisa rápida na Internet, e vocês
encontrarão este valente a defender o cultivo de maconha em
cooperativas. Segundo ele, isso ajuda a combater o tráfico!!! A coca,
creio, ele deixa para as cooperativas dos companheiros bolivianos… Está
de braços dados com Abramovay, aquele que quer pequenos traficantes fora da cadeia…
Pergunto: uma
campanha defendendo outro ponto de vista teria também lugar na TV, uma
concessão pública, ou não? Em nome da equanimidade, da pluralidade e da
transparência, esse negócio tem de sair do ar.
PS – O lobby de pessoas favoráveis à
descriminação das drogas e de consumidores disfarçados de amigos das
ideias é fortíssimo. Este texto é meu, não da VEJA. Não sei o que a
revista pensa a respeito.  Eu respondo por ele, mais ninguém. É muito
tarde, ou muito cedo, para acordar a direção da revista…
PS2 –
Não venham os oportunistas de sempre tentar dar truque aqui e usar o
caso como pretexto para defender, como é mesmo?, "o controle social da
mídia"! Não passarão! Até porque os que querem essa porcaria — Paulo
Teixeira é um deles… — são viciados em outra droga: a droga da ditadura e do autoritarismo.

terça-feira, 24 de julho de 2012

O modo petista de ver as greves (por Reinaldo Azevedo)

E lá se foi mais uma reunião entre o governo e os representantes dos professores das universidades federais, que estão em greve há mais de dois meses. Nesta terça, haverá uma nova reunião, mas Sérgio Mendonça, secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Planejamento, afirmou que o acordo ainda está distante. O governo sustenta que o reajuste prometido já significa um gasto extra de R$ 3,9 bilhões nos próximos três anos.

"O governo tem que responder. A categoria está insatisfeita com a proposta apresentada. Se os professores continuam em greve, a responsabilidade é dele. Nossa greve não é ilegal, quem não avança é o governo", afirmou ao jornal O Globo Marinalva Oliveira, presidente do Andes (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior).
É, minhas caras, meus caros, a negociação entre as lideranças do movimento grevista e o governo é, assim, uma espécie de confronto de dois atrasos… Por que escrevo isso? Bem, o governo é o principal responsável pelo impasse porque não se apressou em propor o prometido plano de carreiras, investiu de maneira irresponsável no inchaço das universidades federais e não pôde arcar com os custos de infraestrutura. Obra do genial Fernando Haddad, o queridinho de boa parte da imprensa paulistana.

Mas é evidente que a pauta de reivindicações dos sindicalistas traz o indisfarçável cheiro da naftalina das esquerdas d'antanho. Leiam esta outra declaração de Marinalva ao Globo:
"O governo achava que a proposta apresentada é um avanço, mas ela desestrutura a carreira. Queremos a correção das distorções salariais. Se um professor tem a mesma função, tem que ter o mesmo reajuste. A proposta atual é pior do que [a progressão de carreira] a que existe hoje; exige critérios de produtividade para progredir na carreira".

Entenderam o busílis? A liderança do movimento grevista é contra uma coisinha básica, presente em todas as instituições e sociedades contemporâneas: a promoção por mérito. E o ministro Aloizio Mercadante, de modo acertado (nesse particular), afirma que esse é um fundamento irrevogável da proposta. Xiii, ele tem problemas com essa palavra, né?

Lembram-se da Apeoesp?
O interessante, morbidamente engraçado, nessa história é que, em São Paulo, a Apeoesp, sob o comando do PT, comandou, em 2010, uma verdadeira guerra contra o programa de qualificação dos professores, que prevê a promoção por mérito. Está na raiz das tentativas de greve que o sindicato tentou, sem sucesso, comandar no estado.

Dilma, agora, não quer ceder a uma revindicação dos professores das universidades federais que ela aplaudiu em São Paulo, quando candidata à Presidência. Mais do que aplaudiu: recebeu a notória Bebel, presidente da Apeoesp, um dia depois de essa grande líder ter comandado uma manifestação de rua cobrando de Serra justamente o que os professores das federais cobram agora da governanta: o fim da promoção por mérito. Uma observação se faz necessária em nome da precisão: a pauta de Bebel era só pretexto. Ela fazia mesmo era campanha eleitoral — foi multada pelo TSE por isso.

Os professores das federais, ao menos, reconheça-se, têm uma pauta equivocada, mas não estão participando de uma conspirata eleitoreira.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A Marcha da Insensatez

J.R. GUZZO

O advogado paulista Márcio Thomaz Bastos encontra-se, aos 76 anos de idade, numa posição que qualquer profissional sonharia ocupar. Ao longo de 54 anos de carreira, tornou-se, talvez, o criminalista de maior prestígio em todo o Brasil, foi ministro da Justiça no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus honorários situam-se hoje entre os mais altos do mercado — está cobrando 15 milhões de reais, por exemplo, do empresário de jogos de azar Carlinhos Cachoeira, o mais notório de seus últimos clientes. Num país que tem mais de 800 000 advogados em atividade, chegou ao topo do topo entre seus pares. É tratado com grande respeito nos meios jurídicos, consultado regularmente pelos políticos mais graúdos de Brasília e procurado por todo tipo de milionário com contas a acertar perante o Código Penal. Bastos é provavelmente o advogado brasileiro com maior acesso aos meios de comunicação. Aparece em capas de revista. Publica artigos nos principais veículos do país. Aparece na televisão, fala no rádio e dá entrevistas. Trata-se, em suma, do retrato acabado do homem influente. É especialmente perturbador, por isso tudo, que diga em voz alta as coisas que vem dizendo ultimamente. A mais extraordinária delas é que a imprensa "tomou partido" contra os réus do mensalão, a ser julgado em breve no Supremo Tribunal Federal, publica um noticiário "opressivo" sobre eles e, com isso, desrespeita o seu direito de receber justiça.

Se fosse apenas mais uma na produção em série de boçalidades que os políticos a serviço do governo não param de despejar sobre o país, tudo bem; o PT e seus aliados são assim mesmo. Mas temos, nesse caso, um problema sério: Márcio Thomaz Bastos não é um boçal. Muito ao contrário, construiu uma reputação de pessoa razoável, serena e avessa a jogar combustível em fogueiras; é visto como um adversário de confrontos incertos e cético quanto a soluções tomadas na base do grito. É aí, justamente, que se pode perceber com clareza toda a malignidade daquilo que vem fazendo, ao emprestar um disfarce de seriedade e bom-senso a ações que se alimentam do pensamento totalitário e levam à perversão da justiça. Por trás do que ele pretende vender como um esforço generoso em favor do direito de defesa, o que realmente existe é o desejo oculto de agredir a liberdade de expressão e manter intacta a impunidade que há anos transformou numa piada o sistema judiciário do Brasil. Age, nesses sermões contra a imprensa e pró-mensalão, como um sósia de Lula ou de um brucutu qualquer do PT; mas é o doutor Márcio Thomaz Bastos quem está falando — e se quem está falando é um crânio como o doutor Márcio, homem de sabedoria jurídica comparável à do rei Salomão, muita gente boa se sente obrigada a ouvir com o máximo de respeito o que ele diz.
O advogado Bastos sustenta, em público, que gosta da liberdade de imprensa. Pode ser — mas do que ele certamente não gosta, em particular, é das suas consequências. Uma delas, que o incomoda muito neste momento, é que jornais e revistas, emissoras de rádio e de televisão falam demais, segundo ele, do mensalão, e dizem coisas pesadas a respeito de diversos réus do processo. Mas a lei não estabelece quanto espaço ou tempo os meios de comunicação podem dedicar a esse ou aquele assunto, nem os obriga a ser imparciais, justos ou equilibrados; diz, apenas, que devem ser livres. O que o criminalista número 1 do Brasil sugere que se faça? Não pode, é claro, propor um tabelamento de centímetros ou minutos a ser obedecido pelos veículos no seu noticiá­rio sobre casos em andamento nos tribunais — nem a formação de um conselho de justos que só autorizaria a publicação de material que considerasse neutro em relação aos réus. Os órgãos de imprensa podem, com certeza, ter efeito sobre as opiniões do público, mas também aqui não há como satisfazer as objeções levantadas pelo advogado Bastos. O público não julga nada; este é um trabalho exclusivo dos juízes, e os juízes dão as suas sentenças com base naquilo que leem nos autos, e não no que leem em jornais. Será que o ex-ministro da Justiça gostaria, para cercar a coisa pelos quatro lados, que a imprensa parasse de publicar qualquer comentário sobre o mensalão um ano antes do julgamento, por exemplo? Dois anos, talvez? Não é uma opção prática — mesmo porque jamais se soube quando o caso iria ser julgado.

MINISTRO REPROVADO
A verdade é que a pregação de Márcio Thomaz Bastos ignora os fatos, ofende a lógica e deseduca o público. De onde ele foi tirar a ideia de que os réus do mensalão estão tendo seus direitos negados por causa da imprensa? O julgamento vai se realizar sete anos após os fatos de que eles são acusados — achar que alguém possa estar sendo prejudicado depois de todo esse tempo para organizar sua defesa é simplesmente incompreensível. Os réus gastaram milhões de reais contratando as bancas de advocacia mais festejadas do Brasil. Dos onze ministros do STF que vão julgá-los, seis foram indicados por Lula, seu maior aliado, e outros dois pela presidente Dilma Rousseff. Um deles, José Antonio Toffoli, foi praticamente um funcionário do PT entre 1995 e 2009, quando ganhou sua cadeira na corte de Justiça mais alta do país, aos 41 anos de idade e sem ter nenhum mérito conhecido para tanto; foi reprovado duas vezes ao prestar concurso para juiz, e esteve metido, na condição de réu, em dois processos no Amapá, por recebimento ilícito de dinheiro público. Sua entrada no STF, é verdade, foi aprovada pela Comissão de Justiça do Senado; mas os senadores aprovariam do mesmo jeito se Lula tivesse indicado para o cargo um tamanduá-bandeira. O próprio ex-presidente, enfim, vem interferindo diretamente em favor dos réus — como acaba de acusar o ministro Gilmar Mendes, com quem teve uma conversa em particular muito próxima da pura e simples ilegalidade. Mas o advogado Bastos, apesar disso tudo, acha que os acusados não estão tendo direito a se defender de forma adequada.

Há uma face escura e angustiante na escola de pensamento liderada por Bastos, em sua tese não declarada, mas muito clara, segundo a qual a liberdade de expressão se opõe ao direito de defesa. Ela pode ser percebida na comparação que fez entre o mensalão e o julgamento do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, condenados em 2010 por assassinarem a filha dele de 5 anos de idade, em 2008, atirando a menina pela janela do seu apartamento em São Paulo — crime de uma selvageria capaz de causar indignação até dentro das penitenciárias. Bastos adverte sobre o perigo, em seu modo de ver as coisas, de que os réus do mensalão possam ter o mesmo destino do casal Nardoni; tratou-se, segundo ele, de um caso típico de "julgamento que não houve", pois os meios de comunicação "insuflaram de tal maneira" os ânimos que acabou havendo "um justiçamento" e seu julgamento se tornou "uma farsa". De novo, aqui, não há uma verdadeira ideia; o que há é a negação dos fatos. Os Nardoni tiveram direito a todos os exames técnicos, laudos e perícias que quiseram. Foram atendidos em todos os seus pedidos para adiar ao máximo o julgamento. Contrataram para defendê-los um dos advogados mais caros e influentes de São Paulo, Roberto Podval — tão caro que pôde pagar as despesas de hospedagem, em hotel cinco-estrelas, de 200 amigos que convidou para o seu casamento na ilha de Capri, em 2011, e tão influente que um deles foi o ministro Toffoli. (Eis o homem aqui, outra vez.)
Ao sustentar que o casal Nardoni foi vítima de um "justiçamento", Bastos ignora o trabalho do promotor Francisco Cembranelli, cuja peça de acusação é considerada, por consenso, um clássico em matéria de competência e rigor jurídico. Dá a entender que os sete membros do júri foram robôs incapazes de decidir por vontade própria. Mais que tudo, ao sustentar que os assassinos foram condenados pelo noticiário, omite a única causa real da sentença que receberam — o fato de terem matado com as próprias mãos uma criança de 5 anos. Enfim, como fecho de sua visão do mundo, Bastos louvou, num artigo para a Folha de S.Paulo, a máxima segundo a qual "o acusado é sempre um oprimido". Tais propósitos são apenas um despropósito. Infelizmente, são também admirados e reproduzidos, cada vez mais, por juristas, astros do ambiente universitário, intelec­tuais, artistas, legisladores, lideranças políticas e por aí afora. Suas ações, somadas, colocaram o país numa marcha da insensatez — ao construírem ano após ano, tijolo por tijolo, o triunfo da impunidade na sociedade brasileira de hoje.

ABERRAÇÃO IRRELEVANTE
O Brasil é um dos poucos países em que homicidas confessos são deixados em liberdade. O jornalista Antonio Pimenta, por exemplo, matou a tiros sua ex-namorada Sandra Gomide, em 2000, e admitiu o crime desde o primeiro momento; só foi para a cadeia onze anos depois, num caso que a defesa conseguiu ir adiando, sem o apoio de um único fato ou motivo lógico, até chegar ao Supremo Tribunal Federal. Homicidas, quando condenados, podem ter o direito de cumprir apenas um sexto da pena. Se não forem presos em flagrante, podem responder em liberdade a seus processos. Autores dos crimes mais cruéis têm direito a cumprir suas penas em prisão aberta ou "liberdade assistida". Se tiverem menos de 18 anos, criminosos perfeitamente conscientes do que fazem podem matar quantas vezes quiserem, sem receber punição alguma; qualquer sugestão de reduzir esse limite é prontamente denunciada como fascista ou retrógrada pelo pensamento jurídico que se tornou predominante no país. O resultado final dessa convicção de que só poderá haver justiça se houver cada vez mais barreiras entre os criminosos e a cadeia está à vista de todos. O Brasil registra 50 000 homicídios por ano — e menos de 10% chegam a ser julgados um dia.

Nosso ex-ministro da Justiça, porém, acha irrelevante essa aberração. O problema, para ele, não está na impunidade dos criminosos, e sim na imprensa — que fica falando muito do assunto e acaba criando um "clamor popular" contra os réus. Esse clamor popular, naturalmente, tem dois rostos. É bom quando vai a favor das posições defendidas por Bastos e por quem pensa como ele; é chamado, nesse caso, de "opinião pública". É ruim quando vai contra; é chamado, então, de "linchamento moral". A impunidade para crimes descritos como "comuns", e que vão superando fronteiras cada vez mais avançadas em termos de perversidade, é, enfim, só uma parte dessa tragédia. A outra é a impunidade de quem manda no país. Não poderia haver uma ilustração mais chocante dessa realidade do que a cena, há duas semanas, em que a maior liderança política do Brasil, o ex-presidente Lula, se submete a um beija-mão em público perante seu novo herói, o deputado Paulo Maluf — um homem que só pode viver fora da cadeia no Brasil, pois no resto do planeta está sujeito a um mandado internacional de prisão a ser cumprido pela Interpol. É, em suma, o desvario civilizado — tanto mais perigoso por ser camuflado com palavras suaves, apelos por uma "justiça moderna" e desculpas de que a "causa popular" vale mais que a moral comum. Um dos maiores criminalistas que já passaram pelo foro de São Paulo, hoje falecido, costumava dizer que o direito penal oferece apenas duas opções a um advogado. Na primeira, ele se obriga a só aceitar a defesa de um cliente se estiver honestamente convencido de sua inocência. Na segunda, torna-se coautor de crimes. O resto, resumia ele, é apenas filosofia hipócrita para justificar o recebimento de honorários. Há um abismo entre a postura desse velho advogado e a do doutor Márcio. Fica o leitor convidado, aqui, a ecolher qual das duas lhe parece mais correta.